segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Por que o silêncio da Axé Music?

Diante das últimas manifestações graves de homofobia que ganharam o noticiário (o espancamento de jovens gays por adolescentes de classe média alta na Avenida Paulista, em São Paulo, e o tiro que um sargento do Exército disparou contra um rapaz homossexual que circulava com amigos pelo Arpoador logo após a Parada Gay do Rio de Janeiro), eu até gostaria de dedicar esta coluna a mais um exercício de denúncia e desconstrução da homofobia - essa aversão aos modos de vida homossexual - como já o fiz outras vezes. Porém, a repercussão da coluna da semana passada, em que tratei dos problemas que estão fazendo de Salvador uma cidade feia e sem qualidade de vida, obriga-me a voltar a este tema. Recebi dezenas de e-mails e muitos comentários foram deixados na versão on line da coluna. Em nenhuma dessas mensagens, o autor discordava do que escrevi, muito pelo contrário: cada uma acrescentava, aos problemas que apresentei (abandono do Centro Histórico, praias sujas e trânsito caótico), um novo que, aos seus olhos, comprometia a imagem pública da capital baiana de cidade limpa, linda, segura, alegre, cultural e mística. Estas duas últimas características de Salvador - cultural e mística - estariam comprometidas, segundo os e-mails enviados, por uma negligência do poder público e pelo crescimento da influência dos cristãos evangélicos fundamentalistas sobre as políticas da prefeitura e do governo do estado. Os cristãos fundamentalistas são, todos sabem, os principais inimigos das religiões de matriz africana, que são as bases da identidade cultural que Salvador vende ao mundo no negócio do turismo. Eis a encruzilhada em que estamos metidos! E, nessa encruzilhada, eu me interrogo sobre o silêncio ou a indiferença dos artistas da cena axé, que enriqueceram explorando comercialmente essa identidade cultural ("a baianidade nagô").


À exceção de Daniela Mercury e de Margareth Menezes, que, ainda que de vez em quando, manifestam-se, em shows ou entrevistas, sobre os problemas de Salvador, todos os outros artistas - justamente os que mais lucram com a venda de blocos e de festas a turistas - mantêm-se calados em relação ao abandono da cidade. Por quê? Não é uma atitude no mínimo burra não se preocupar com o estado da cidade que é base territorial de seus negócios? Qual turista vai querer comprar pacotes de viagens, com shows e abadás inclusos, para uma cidade cada vez mais suja, com trânsito caótico, sem segurança e, ainda por cima, sem aquela alegria e misticismo que, aos poucos, vem sendo substituída por tonalidades cinzas de um cristianismo obscurantista e intolerante em relação ao candomblé? Até quando a imagem de cartão-postal vai se sustentar sem a base cultural? A expressão maior de que a imagem publicitária da "baianidade nagô" está descolada da base são os grandes artistas da axé music que fazem questão de professar publicamente sua fé cristã, numa catilena populista do tipo "sou de Jesus", e são indiferentes aos dilemas que o povo de santo, cujos terreiros deram régua e compasso para a axé music, enfrentam. Por que essa nova geração da axé music e os da geração passada que continuam na ativa não são capazes de fazer uma "brincadeira" musical semelhante àquela idealizada por Cristovão Rodrigues e Nizan Guanaes em meados dos 80 - 'We are the world of Carnaval' - em favor de Salvador e de sua diversidade cultural? O que lhes custa pressionar a população e o poder público por meio do que sabem fazer bem, da música?


Por que não defendem Salvador e todos os santos da Baía? Se por falta de canção, eu sugiro algumas: São Salvador (Caymmi), Salvador é um porto seguro (Moraes Moreira), Baianidade Nagô (Evany), Rebentão (Carlos Pita), O canto da cidade (Tote Gira/Daniela Mercury), Bahia, minha preta (Caetano Veloso), É d´Oxum (Gerônimo/Vevé Calazans) ou a própria We are the world of Carnaval. Uma campanha nesse sentido resgata a autoestima do povo, faz com que ele se comprometa positivamente com a cidade e, principalmente, pressiona o poder público. O que não pode acontecer é essa indiferença ou esse silêncio por parte de artistas que são referência na - e vivem da - cidade. O que é lamentável é que os artistas se refugiem em seus oásis construídos com o dinheiro que conseguiram fazendo uso e abuso da cidade e da cultura de matriz africana e façam pouco caso dos problemas que estão ameaçando as mais valiosas riquezas naturais e culturais da cidade!

Transcrição do Jornal "Correio*", coluna Mais, por Jean Wyllys, em 19 de novembro de 2010, página 30.


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